Autoria: Camila Lopes Lira, Ana Laura Tribst Correa e Aurea M. Ciotti
Uma das primeiras informações que temos quando observamos o mar é a transparência de suas águas. Rapidamente notamos se elas estão cristalinas para um mergulho, se podemos ver peixes, outros organismos ou até mesmo o fundo de rochas ou areia.
A ciência da transparência da água teve origem há bastante tempo, e com ela também veio o desenvolvimento de um instrumento muito simples, de baixo custo e que até hoje é frequentemente utilizado, conhecido como disco de Secchi. Seu funcionamento é super prático e produz resultados muito úteis, até mesmo para compararmos diferentes corpos d'água.
Exemplo de disco de Secchi. Pesquisadora colocando o disco no mar. Foto: Carolina Ferreira.
Este instrumento foi desenhado como um disco, medindo de 20 a 30 centímetros de diâmetro, com coloração inteiramente branca ou intercalada em branco e preto, feito de um material que seja pesado o suficiente para afundar no corpo de água. Normalmente os discos de Secchi são de metal, como ferro ou alumínio. Esse disco é preso, exatamente no ponto central, a um cabo (corda náutica) com marcações de medida de comprimento que, em geral, são de meio em meio metro.
Caso o disco não seja composto por um material pesado o suficiente para afundar verticalmente na água, como madeira ou acrílico, coloca-se mais peso acoplado ao disco. O peso do disco é um ponto muito importante para que a medida seja de qualidade, uma vez que a ideia é que ele afunde de forma que o cabo ao qual esteja amarrado fique o mais vertical possível.
Seu funcionamento é outro ponto que ressalta sua simplicidade, sendo totalmente manual e necessitando apenas de uma única pessoa para operá-lo. Seu local de uso mais comum é dentro de embarcações paradas, mas também pode ser utilizado em píeres.
As maiores vantagens para a sua utilização são a simplicidade de uso, armazenamento e transporte, seu baixo custo de aquisição e manutenção e a quantidade de informações que podem ser obtidas pelo seu uso, sendo um instrumento muito utilizado no meio científico, e que permite comparações de dados vindos de diferentes pesquisadores e em momentos distintos. Outra vantagem científica é que, pela sua origem antiga, temos um enorme acúmulo de dados registrados disponíveis, que podem ser utilizados para novas pesquisas.
Este é um dos poucos instrumentos que mantiveram um lugar de destaque nas ciências do mar até os dias de hoje e que requerem a visão humana como parte integrante do processo de medição. Ele é considerado um ícone entre os instrumentos científicos no que se refere à relação entre custo e efetividade, sendo sempre um forte candidato a auxiliar em programas de monitoramento de ambientes aquáticos e com grande potencial para ser utilizado em projetos de ciência cidadã (abre a possibilidade para que qualquer pessoa da sociedade participe de ao menos alguma etapa do processo de construção do conhecimento científico, ou seja, fazer ciência).
A transparência da água despertou a curiosidade de muitas pessoas ao longo do tempo, tanto que em 2010 o oceanógrafo físico Marcel Wernard, do Instituto Real de Estudos Marítimos da Holanda, nos presenteou com uma publicação detalhada, trazendo o histórico de tentativas de se medir a transparência da água do mar, culminando com o desenvolvimento e consolidação da técnica do disco de Secchi.
Em seu artigo, ele reporta que os primeiros registros de medição de transparência de água do mar foram de um naturalista alemão chamado Adelbert von Chamisso, que os fez durante a expedição russa “Rurik”. Esta expedição navegou entre 1815 e 1818 pelo Mar de Bering (localizado entre a Ásia e a América do Norte). Para realizar as medidas, ele utilizou uma superfície esbranquiçada rudimentar acoplada ao cabo de sondagem da embarcação.
Wernard ainda nos conta que, após isso, outros capitães e cientistas, de outras expedições científicas, também procuraram desenvolver maneiras que melhor aferissem a transparência da água. Assim, foram utilizadas diferentes ferramentas como pratos e até toalhas, em geral de cor branca. Algumas tentativas, inclusive, chegaram a ser muito semelhantes ao método do disco de Secchi de hoje, mas não haviam sido suficientemente testadas, estudadas e nem propriamente descritas para se estabelecer como padrão.
Foi então que, em 1865, curiosamente, um padre e astrônomo italiano chamado Pietro Angelo Secchi, ganhou destaque pela técnica propriamente testada, descrita e publicada por ele mesmo. Para isso, Secchi realizou inúmeros testes durante as viagens que fez na embarcação Nave Papal Imaculada Conceição, comandada pelo Capitão Cialdi. Nessas viagens, Secchi foi responsável por medir a transparência da água do Mar Mediterrâneo, o que possibilitou todo o estudo.
Após a técnica ter sido propriamente descrita e publicada por Secchi, ficou disponível para que outras pessoas pudessem estudá-la, aprimorá-la e testá-la - o que chamamos de abordagem empírica - sendo finalmente padronizada. Apesar da técnica ter sido publicada por Secchi em 1865, apenas no início do século XX que ela foi cientificamente reconhecida e passou a se chamar, de fato, técnica do disco de Secchi.
O cientista John Tyler, do Laboratório de Visibilidade da Universidade da Califórnia, no ano de 1968, nos conta que Secchi realizou todos estes experimentos e testes graças à curiosidade aguçada e à visão científica do Comandante Cialdi. Este comandante tinha muito interesse sobre a transparência da água do mar, a visibilidade do fundo e a movimentação das ondas no mar. Cialdi, então, convidou Secchi para desenvolver os testes de transparência na embarcação que ele comandava, sem nem imaginar o tamanho da contribuição científica que resultaria dessa viagem.
Mas qual a importância da medição da transparência da água?
A medida da transparência da água, obtida através do disco de Secchi, é de grande importância para estudos sobre corpos d’água é muito comum em programas de monitoramento ambiental e observações marinhas.
Esta variável é influenciada por inúmeros fatores como o tipo de ecossistema (ambientes costeiros estuarinos ou não, ou de mar aberto), a circulação das massas de água, ventos, quantidade e tipos de organismos e nutrientes em suspensão, chuvas, poluição, tipos de sedimento, entre outros. Dependendo do local, a medida pode variar ao longo de um único dia.
As alterações na transparência se relacionam com diminuição da luminosidade solar conforme ela penetra na coluna d’água, o que é um fator limitante para a vida. A região que vai desde a superfície do mar até a profundidade em que a luz chega em quantidade suficiente para que certos organismos realizem fotossíntese é chamada zona eufótica. Em geral, essa zona vai até aproximadamente 200 metros de profundidade.
Por meio das medidas de profundidade de desaparecimento do disco de Secchi, pode-se mensurar a transparência vertical da água naquele local. Essa medida simples nos traz informações preciosas relacionadas com a disponibilidade de luz e nutrientes para os ambientes subaquáticos e até com a quantidade de organismos, normalmente minúsculos, que estão presentes à deriva na coluna da água, chamados coletivamente de plâncton.
A principal ciência envolvida na utilização do disco é a física dos oceanos, mais especificamente a óptica, que se refere a tudo que se relaciona com a luz que ilumina e se propaga pelas suas águas, bem como com sua intensidade e cor. Entender como a luz se comporta na coluna d'água é de grande importância para pesquisas sobre os ambientes marinhos e toda a vida associada a eles. Tal compreensão abrange desde estudos direcionados às algas - já que estas realizam fotossíntese e, para tanto, necessitam da luz - até estudos sobre a visão dos organismos e de como alguns utilizam a sua própria cor para se esconder de predadores.
Atualmente, com o avanço da ciência, o uso das medições obtidas com o disco de Secchi possuem uma nova e ampla gama de aplicações. Uma delas, que vêm sendo aprimorada gradativamente, é o desenvolvimento de modelos, cada vez mais precisos, que sejam capazes de monitorar a transparência da água por meio de imagens de satélites.
Um modelo, de forma bem simplificada, é uma equação matemática que nos permite estimar alguma variável ambiental a partir de outras informações (em geral, mais fáceis de se medir) que a influenciam. Com isso, relacionando duas ou mais variáveis, podemos estimar uma a partir da outra (ou das outras). Um tipo de modelo famoso, que faz parte do nosso dia a dia, é a previsão do tempo, pela qual diversas informações atmosféricas do momento são relacionadas no sentido de se tentar presumir o que vem pela frente.
Assim como na previsão do tempo, sempre contamos com especialistas para elaboração de modelos, cada vez melhores, que nos permitem ultrapassar certas limitações na pesquisa. Como exemplo, o Doutor ZhongPing Lee, cientista e professor na Universidade de Massachusetts Boston, nos Estados Unidos, em 2015 desenvolveu um dos mais recentes e inovadores modelos que relacionam a profundidade de desaparecimento do disco de Secchi com imagens de satélites. Este fato foi um grande avanço científico, já que a transparência da água é uma característica que varia muito ao longo do tempo e do espaço, e a constante medição nos locais é inviável, limitando assim, a detecção de possíveis eventos.
Guia prático para o uso e registro de dados com um disco de Secchi
O primeiro passo para se utilizar um disco de Secchi, é a definição e registro do ponto de parada para a medição. O horário ideal da coleta, definido com base nos estudos e testes realizados por Secchi, deve ser, preferencialmente, entre 10 e 14 horas (pensando no contexto do Sudeste do Brasil), por conta da posição do sol no céu e sua inerente influência na medição.
Ao chegar ao ponto escolhido, a embarcação deve parar e a pessoa que irá manusear o disco de Secchi deve se posicionar na borda mais sombreada da embarcação. Essa foi mais uma descoberta advinda dos testes de Secchi, que entendeu e demonstrou os prejuízos que o reflexo da luz direta do Sol na lâmina da água tem sobre as medições, recomendando que estas sejam feitas à sombra.
Em seguida, o disco de Secchi é colocado na água e vai sendo afundado, mediante a liberação gradual do cabo a ele amarrado (veja a imagem 2 e 3), até a iminência de seu desaparecimento para a pessoa que o manuseia. Deve-se então verificar a medida do comprimento da porção submersa do cabo graduado, ou seja quanto de cabo ficou efetivamente embaixo da água, o que indica a profundidade que o disco desceu a partir da lâmina d'água até que sua visualização não fosse mais possível. Essa será a medida de transparência vertical, ou profundidade de desaparecimento do disco de Secchi, o que pode ser entendido como a transparência da água. Após a verificação da medida, o instrumento deve ser recolhido para dentro da embarcação e posteriormente enxaguado com água doce.
É importante notar que, caso o fundo do corpo d’água possa ser visualizado a partir da embarcação, a medição com o disco de Secchi perde o sentido, uma vez que o disco ainda será visto na profundidade máxima possível, o que dá a entender que a transparência da água nesse local é maior do que ela pode ser aferida com o instrumento.
Esquema ilustrativo de como o disco de Secchi pode ser visto em diferentes profundidades, demonstrando sua visualização cada vez mais dificultada ao longo da coluna d’água.
Como varia a profundidade do disco de Secchi em Alcatrazes?
O Arquipélago de Alcatrazes é um local ímpar e ainda com poucos estudos sobre seus padrões ambientais. Nesse sentido, o Laboratório Aquarela, com apoio do Projeto Mar de Alcatrazes e outras agências de fomento, se empenha em desvendar os mistérios desse refúgio natural. O entendimento da variação da transparência da água, junto aos fatores que a influenciam, fornecem suporte a futuras pesquisas e contribuem muito para os tomadores de decisão atuarem com mais precisão e efetividade na proteção das espécies e no equilíbrio dos ecossistemas dessa região, além de reforçar a importância das áreas protegidas.
O disco de Secchi é um instrumento constantemente utilizado em nossas expedições científicas em Alcatrazes. Realizamos medições em todos os nossos pontos de parada para entender se a transparência da água varia em diferentes locais do Arquipélago e, se sim, quais condições específicas contribuem para essas diferenças.
Os nossos estudos já demonstraram que muitos fatores, como a temperatura, a salinidade, a estratificação e o vento podem afetar a transparência da água, mas ainda estamos procurando entender quais deles exercem maior influência e se existe algum padrão que possa nos auxiliar a prever mudanças ao longo do tempo. Por enquanto, temos fortes indícios de que a direção e intensidade do vento são bastante influentes.
Pesquisador em Alcatrazes colocando o disco de Secchi no mar para realizar a medição de transparência da água. Foto por Pedro Furtado.
Na imagem abaixo, observamos algumas ilhas do Arquipélago de Alcatrazes, incluindo a principal, com destaque para os círculos em vermelho, que representam os principais pontos em que realizamos as coletas de dados mediante a colocação de instrumentos na água, incluindo o disco de Secchi.
Vista aérea do Arquipélago de Alcatrazes com destaque para os quatro principais pontos de amostragem de informações sobre as variáveis ambientais da água (círculos em vermelho). Foto por Leo Francini.
Durante o tempo em que temos estudado a região, constatamos que em algumas ocasiões a transparência da água se altera muito pouco entre diferentes locais do Arquipélago em um mesmo dia, enquanto que em outros momentos observamos variações consideráveis entre os pontos em um intervalo de tempo muito curto. Porém, não há ainda, dados suficientes para explicar essas variações e a continuidade das pesquisas poderão, no futuro, responder algumas dúvidas atuais.
Os resultados mostram que a transparência da água no Arquipélago de Alcatrazes pode se alterar em pouco tempo, mas ao mesmo tempo fica perceptível que suas águas costumam ser consideravelmente mais transparentes quando comparamos com pontos próximos à costa como, por exemplo, o Canal de São Sebastião.
Para visualizar este fato, faremos uma comparação entre os dados coletados por nossas equipes no Arquipélago dos Alcatrazes e no Canal de São Sebastião. Para isso, transformamos nossas medições com o disco de Secchi em dois gráficos, dispostos abaixo (imagem 5 e 6), ilustrando essa forte evidência com maior clareza.
Gráfico com as medidas, realizadas pelo Projeto Mar de Alcatrazes, de profundidade de desaparecimento de disco de Secchi no Arquipélago de Alcatrazes - 91 observações feitas entre dezembro de 2021 e julho de 2023.
Gráfico com as medidas, realizadas pelo Laboratório Aquarela, de profundidade de desaparecimento de disco de Secchi no Canal de São Sebastião - 60 observações feitas entre dezembro de 2021 e julho de 2023.
Para interpretarmos os gráficos acima, vamos olhar atentamente para ambos e observar o que cada cor representa. Podemos entender rapidamente que as fatias mais escuras representam as medições de transparência (profundidade Secchi) menores, ou seja, a água estava mais turva no momento da medição. Da mesma forma, as fatias de cores mais claras representam as medições de alta transparência, ou seja, águas mais cristalinas.
Se olharmos para as porcentagens, podemos perceber que o gráfico das medidas de Alcatrazes traz como maior fatia as medidas de profundidade de Secchi maiores que 10 e iguais ou menores que 15 metros (44%), e ainda uma considerável fatia com valores maiores que 15 metros (23%). Apenas 3% apresentaram valores iguais ou menores que 5 metros, ou seja, 3 a cada 100 medidas que fizemos.
Já ao observarmos o gráfico das medições feitas no Canal de São Sebastião, vemos que a maior fatia (59%) é a que representa medições com menos de 5 metros, ou seja, a maioria demonstra pouca transparência. Além disso, medidas superiores a 15 metros sequer foram registradas neste local.
Com as informações acima fica fácil visualizar o quão diferente é a transparência da água nestes dois locais. O desafio agora é entender tudo o que está relacionado com os diferentes aspectos ambientais em Alcatrazes. Por isso, o Laboratório Aquarela vem se dedicando a monitorar e entender mais a fundo as particularidades que cercam este ambiente ainda pouco explorado.
Referências
Fleming-Lehtinen, V., Laamanen, M., (2012). Long-term changes in Secchi depth and the role of phytoplankton in explaining light attenuation in the Baltic Sea. Estuarine, Coastal and Shelf Science, 102–103, 1–10. DOI: https://doi.org/10.1016/j.ecss.2012.02.015
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Luhtala, H., & Tolvanen, H. (2013). Optimizing the use of Secchi depth as a proxy for euphotic depth in coastal waters: an empirical study from the Baltic Sea. ISPRS International Journal of Geo-Information, 2(4), 1153–1168. DOI: https://doi.org/10.3390/ijgi2041153
Preisendorfer, R. W. (1986). Secchi disk science: Visual optics of natural waters. Limnology and Oceanography, 31, 909–926. DOI: https://doi.org/10.4319/lo.1986.31.5.0909
Tyler, J. E. (1968). The Secchi disc. Limnology and Oceanography, 13, 1–6. DOI: https://doi.org/10.4319/lo.1968.13.1.0001
Wernand, M. R. (2010). On the history of the Secchi disc. Journal European Optical Society — Rapid Publications, 5, 10013s. DOI: https://doi.org/10.2971/jeos.2010.10013s